Mas a serpente era mesmo serpente?
Adam Clarke usou uma metodologia interessantíssima para atribuir uma identidade ao termo nãhãã, geralmente traduzido por "serpente".
Clarke acreditava que o texto retrata uma criatura viva, real. Ele também percebeu que algumas referências bíblicas mencionavam criaturas que, naqueles contextos, certamente não poderíam ter sido cobras.
Conforme Clarke, as letras nfis possuem quatro raízes diferentes em hebraico. Às vezes fazem referência ao bronze ou cobre; em outros casos, referem-se à adivinhação ou a outros aspectos de cultos religiosos; uma de suas formas pode até mesmo significar "lascívia" ou "prostituição".
Clarke implícitamente observou que nenhum desses significados atribuídos a essa raiz podería referir-se à aparência ou ao comportamento da cobra; com isso, ele deduziu que a imagem de “serpente" ou "cobra" foi provavelmente elaborada por influência do grego da Septuaginta, cujos tradutores não deram devida importância ao tema.
Influenciado em parte por uma provável relação etimológica com o substantivo árabe para "macaco", Clarke argumentou que o termo nãhãè estava relacionado ao orangotango, o primata mais próximo do ser humano. Um dos primeiros exegetas do Metodismo também concordou com esse ponto de vista, ainda que não seja o comumente aceito; portanto, sabemos que não há evidências concretas sobre a identificação dessa criatura com qualquer animal conhecido atualmente (n.d., p. 47-50).
A maldição da serpente. O pronunciamento da sentença de Deus sobre a serpente se inicia com um particípio passado, maldita é você. Uma vez que a maldição de Deus foi proferida somente sobre a serpente, não devemos interpretar todo o resto como uma maldição; maldita é você entre todos os animais domésticos, e entre todos os animais selvagens!
Nenhum dos outros animais foi amaldiçoado nessa ocasião ou em períodos posteriores. A preposição min não representa nesse contexto uma comparação, conforme é empregada em outros momentos. Nesse caso, ela é partitiva, ou seja, a palavra “de” é indicadora de separação, exclusão ou alienação.
Deveríamos traduzir, pois, conforme Hamilton:
“Você está banida, separada de todo o rebanho e de todas as criaturas do campo” (1990, p. 194).
A serpente havia sido ’ãrüm, ou seja, esperta, astuta, acima de todas as outras criaturas: agora, ela era ’ãrúr, amaldiçoada, inferiorizada a uma condição rebaixada, e separada de todos os animais.
A segunda parte da maldição (rebaixamento) da serpente foi sua humilhação perpétua. Antes havia convencido os humanos a comerem o fruto proibido, mas agora ela, para sempre, rastejará e pó comerá. Trata-se de uma degradação mortífera para uma criatura inteligente, seja ela cobra, orangotango ou qualquer outra, pois agora a serpente havia perdido seu poder de fala, o privilégio de relacionar-se com as outras criaturas de Deus, e sua capacidade de manter-se ereta, fadada a rastejar-se para sempre no pó.
Pó comerá não indica que a dieta do animal seria, literalmente, a terra, como ocorre com as minhocas, por exemplo. O foco da maldição de Deus era sobre a humilhação da cobra (veja SI 72.9; Is 49.23; Mq 7.17). Todavia, com sua cabeça sempre próxima ao chão, ela “comeria” muito pó todos os dias, ainda que sua dieta (se o animal do texto era de fato uma cobra) roedores e outras pequenas criaturas (para ver comentário sobre essa opinião e sobre o orangotango, veja Clarke, s.d., p. 49).