Como é próprio de toda sedução autêntica, a serpente tem algo a oferecer: “Sereis como Deus, sabereis o que é bom e o que é mau”. Isso se refere a saber o que promove e o que prejudica o ser humano, ao conhecimento no sentido abrangente.
A próxima afirmação da mulher:
Mas dofruto da árvore que está no meio dojardim, disse Deus, desse vocês não devem comer faz uma combinação entre os elementos de 2.9 e 2.17.
Ela demonstrou total conhecimento tanto da permissão como da proibi- ção. Suas palavras e o emprego de sufixos do pluralpodemos comer; vocês [pl.] não devem comer, nem tocar [pl.]; do contrário, morrerão [pl.], nos v. 2 e 3, demonstram que a mulher estava ciente das instruções a serem obedecidas por ambos, ainda que os verbos de permissão e proibição se encontrem no singular, em 2.16,17 (veja Fretheim, 1994, p. 360).
Porém o ser humano foi criado com um forte impulso de buscar o conhecimento e de organizar sua existência por meio do conhecimento. A mulher viu que a árvore era desejável para proporcionar conhecimento; a frase interliga a tentação e a sedução. A sedução oferece uma elevação do nível de vida: “Sereis como Deus!” Mas o que o sedutor não diz é que com a transgressão do mandamento de Deus é ultrapassado um limite posto ao ser humano.
Com a transgressão ele de fato obterá conhecimento; porém só mais tarde ficará manifesto que, desse modo, ele também abandonou a proteção e a segurança em que o mandamento de Deus visava mantê-lo.
Alguns comentaristas entendem que a expressão proferida pela mulher: nem toquem nele representa uma declaração falsa ou exacerbada da proibição. É possível que caracterizasse seu próprio exagero da proibição (ou também do homem), similar a muitos exageros da lei mosaica em tradições israelitas posteriores.
No hebraico, tocar [nãga ') pode significar muito mais do que apenas colocar os dedos em um objeto ou pessoa. Em Gn 20.6 e 26.11. O mesmo verbo é empregado em contextos em que a ofensa seria claramente muito mais séria do que um breve toque.
Mais tarde, em um contexto de guerra, o termo significava atacar uma pessoa para feri-la ou até mesmo matá-la. Esse verbo ilustra uma atitude agressiva e, nesse texto, poderia caracterizar algo tomado à força para ser comido. Portanto, a mulher talvez tenha articulado sua fala como uma reafirmação paralela da proibição; paralelismo é o traço distintivo da poesia hebraica, ocorrendo também com muita frequência na prosa.
Se essa foi de fato sua intenção, poderíamos traduzir a frase da seguinte maneira:
vocês [pl.] não podem comer dele; re- pito, vocês [pl.] não podem estender suas mãos epegá-lo para comer.
Nesse contexto, homem e mulher deveríam abster-se de comer o fruto proi- bido; essa renúncia evitaria a consequência indesejada da morte. Tendo em men- te o significado da expressão “para que não” em português, poderíamos talvez tra-duzir a ideia do termo hebraico pen por: para que vocês não morram.